O que você repara
quando anda por aí? Uma vez, conversando com amigas, percebemos que
cada uma reparava mais em alguma coisa. Um reparava nas árvores
caídas e tocos largados que poderiam render umas boas peças de
madeira. Outra, reparava no que poderia tirar estaca para plantar no
canteiro e produzir matéria orgânica para o solo. Eu, reparava no
que dava para comer. Cada olhar tinha o radar praquilo que gerava
prazer interno. Um adorava construir com madeira, outra fazer
agrofloresta, eu encontrar e coletar alimentos enquanto caminhava.
Quizás um prazer ancestral de quanto éramos nômades. Coletar,
comer, repartir, criar formas diferentes de comer, conservar,
fermentar… é tanta coisa que se pode fazer, é tão abundante.
Analisando em
retrospecto, esse olhar não é de agora. Quando pequena, assim que
chegava no sítio do meu vô, nem passava pela casa, descia direto
pro pé de acerola. Ia catando com o maior gosto do mundo, até eu
perceber que estava pisando em formigueiros de lavas-pés, quando
elas já tinham feito jus ao nome. Segundo dia, os pés com aquelas
micro-bolinhas-delícia-de-estourar das picadas, ia olhando para o
chão com cautela. Mas logo vinham as próximas férias, e a mesma
cena se repetia.
Quando mudei para
Campinas, trabalhava no Centro, pegava um ônibus até o terminal e
tinha a opção de pegar outro até em casa, ou caminhar um pouco
mais de 1km por uma praça longa, com árvores antigas e pés de
amora. Usava muito salto na época (trabalhava em banco), mas não
pensava duas vezes e já ia afundando salto e tudo pela grama e
parava pra catar amora. Nas folgas às vezes ainda me aconchegava em
uma das grandes árvores e ficava lendo livro.
A primeira vez que
fui para Sorocaba, foi para fazer um processo seletivo. Fiquei pasma
de passar pela marginal da cidade, cheia de carros, e ver que no rio,
haviam pessoas pescando! Tinha muita árvore, muitos quintais com
plantas. Foi o suficiente para eu simpatizar. Não dei atenção a
estrutura urbana, se tinha shopping, ou sei lá o quê, quando soube
que tinha passado no processo seletivo, fui na imobiliária e disse
assim: moço, quero morar perto do trabalho para ir e voltar a pé,
então olha para mim algo até um raio de 3km do Sesc.
Sempre gostei de
caminhar, justamente para poder reparar nas coisas como nossa
percepção foi feita para reparar. Não na velocidade de um carro,
nem de tartaruga, nem de cachorro, mas na velocidade humana. Esses
dias li um artigo, chamado “Mas de que te serve saber botânica?”
que faz uma crítica ao confinamento dos conhecimentos científicos.
Entre outras coisas, fala sobre cegueira botânica.
“Wandersee e
Schussler (2002) criaram o termo e o definiram como a) a incapacidade
de reconhecer a importância das plantas na biosfera e no nosso
cotidiano; b) a dificuldade em perceber os aspectos estéticos e
biológicos exclusivos das plantas; c) achar que as plantas são
seres inferiores aos animais, portanto, imerecedores de atenção
equivalente.”
Dizia que, se tem lá
uma foto de uma savana africana e girafas, e você perguntar para
alguém o que tem na foto, provavelmente responderá: girafas. E
todas as outras espécies, plantas rasteiras, arbustos, árvores e
afins, passam batido, sendo que só existem girafas nesse ambiente
porque existem plantas, senão elas não teriam comida. E, não só,
tais plantas também são alimentos de elefantes. A acácia africana
tem espinhos que, por si só, não são um problema para esses
animais. Contudo, nos espinhos habitam formigas agressivas que podem
causar forte irritação na mucosa da tromba do elefante, e, tchadãm!
Agora sabemos porque nos desenhos animados o elefante tão gigante
tem medo de tão pequena formiguinha.
Na neurofisiologia,
a justificativa é que o cérebro processa 0,00016% dos dados
produzidos nos olhos, “com prioridade para aspectos como
movimento, padrões salientes de cores, elementos conhecidos e seres
ameaçadores. As plantas são estáticas, não se alimentam de
humanos e confundem-se com o cenário de fundo, tendendo a ser
ignoradass no processamento cerebral, a não ser que estejam em
floração ou frutificação”
Claro que, se
vivéssemos na floresta sobrevivendo de extrativismo, a prioridade
seria outra. O contexto e fatores culturais importam. Na cidade,
associamos a mandioca àquela porçãozinha com cerveja, e não na
planta inteira saindo da terra. A vida na cidade nos afastam dos
processos e origem das coisas. Você aí já viu um pé de arroz de
verdade? Quantas vezes na vida você já comeu arroz? No entanto,
capaz de você topar com um pé de arroz e não saber identificar. E
feijão sem ser no algodão?
Essa experiência do
feijão foi introduzida no ensino por um americano na década de 50,
justamente no período de mecanização e urbanização, e se
espalhou pelo ocidente com o objetivo de ensinar que: a planta vem
da semente. Parece pouco, mas talvez a humanidade tenha passado
longos períodos sendo nômade e tenha se espalhado por todos os
continentes por não ter essa percepção. Bom, depois que brotou da
semente, como cuidar, nutrir, se relacionar com a terra, fica
totalmente a revalia. Saber cultivar o próprio alimento, tão
essencial, tão negligenciado.
No artigo, diz que
meaculpa da cegueira botânica é porque o ensino é chato. Nas
escolas, na Universidade, é insonso, muito teórico,
desinteressante. Enquanto vida de bicho é mais divertida. Como
sabemos, falta estrutura. Para além, falta ir a campo, investigar,
observar, interagir. Falta experientações: aprender sobre clorofila
e pigmentos fica muito mais legal quando se pega a planta, tira uma
cor dela e pinta, do que um quadro explicativo na lousa. Falta
relacionar com outras disciplinas: qual a planta que aparece na
bandeira do Peru? Quantas histórias indígenas conhecemos sobre a
origem do guaraná, da mandioca, da vitória régia? Quais plantas
mudaram o rumo da história? Por quê o pau-brasil foi tão saqueado?
Outro fator que
considero, é que os meios de transporte nos aceleram, sendo meios,
se botam entre nós e o todo, nos afastam. Caminhando há uma
percepção muito diferente. Você fica mais livre para olhar, parar,
tocar, sentir cheiros, colher, sujar a mão de amora… plantas são
essenciais, são o que transformam a energia do Sol em matéria e
produzem comida (a.k.a. fotossíntese). Imagina quantas vidas
viveriam sem plantas no mundo? Vai fundo e imagina mesmo todo o
ciclo. Depois me conta.
E, se acha que estar
no mato é muito bucólico, cheio de marasmo, experimenta deitar um
pouco na terra ao final da tarde e ficar uns minutos ali. É tanta
vida acontecendo, trânsito de seres, os de dia se recolhendo, os da
noite dando as caras, nuvens mudando de cor rapidamente, brisa,
vento, sons, todo um turbilhão! No entanto, não aprendemos a
reparar. Não aprendemos nem a reparar em nós mesmas, a nossos
movimentos internos, os ciclos em relação com o meio, as estações,
a lua, os alimentos que sentimos vontade em determinadas épocas, as
vontades que alternam entre estar no fervo ou em solidão, nosso mar
e ondas internas. Pra reparar é preciso silenciar um tanto, prestar
atenção a nossa cegueira em relação a nós mesmas.
Esse inverno reparei
que estou para dentro, mergulhei em alguns diários antigos,
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