“... Ela dizia ‘Quando uma
pessoa vive de verdade, todos os outros também vivem.´ E todos os animais,
nós incluídos, por meros momentos, voltávamos a ser selvagens.
Ela queria dizer que, quando uma criatura resolve se dedicar
a viver do modo mais pleno possível, muitas outras que estiverem por perto se ´deixarão
contagiar´. Apesar das barreiras, do confinamento, até mesmo de lesões, se
alguém se determinar a superar tudo para viver plenamente, a partir daí outros
também o farão, e esses outros incluem filhos, companheiros, amigos, colegas de
trabalho, desconhecidos, animais e flores. ‘Quando uma pessoa vive de verdade, todos os outros também vivem.´ Esse é o
principal imperativo da mulher sábia. Viver para que outros se inspirem. Viver
do nosso próprio jeito vibrante para que outros aprendam conosco.”
Clarissa Pinkola em A Ciranda das Mulheres Sábias
Quando quis vir pro mato, era pra conhecer a origem e o
processo das coisas. Me intrigava o fato
de nunca ter visto um pé de arroz, e feijão só no algodão. Arroz e feijão. Tão
presentes na vida, todo dia, convivência das antigas e, ao mesmo tempo, velhos desconhecidos. Como
é um pé de arroz? Como é a planta do feijão? Quase passando as 30 primaveras,
sem saber algo tão essencial: saber a origem do alimento, saber cultivar o
alimento. Desde que comecei a pular de mato em mato, não só conheci pessoalmente
essas plantas, mas todo um universo rico de cultivo, preparo, processos,
pessoas, sabores e saberes.
Quando quis vir pro mato, era pra vivenciar a lida rural.
Sair do campo das ideias, da imagem mítica de se estar na rede por entre
flores, borboletas e arco-íris e partir para a prática, pegar em enxada,
amassar barro pra construir parede, capinar, processar os alimentos, plantar. Eu,
bicho urbano, antes de me jogar no mato, julguei importante experienciar o
ritmo de trabalho primeiro, que exige disposição e energia física, para então
sentir se eu dou conta da vida no mato, se eu me encaixo na vida no mato. Ando
descobrindo que eu gosto mesmo da vida do mato. E de toda a labuta envolvida.
Agora, é difícil me ver tocando a vida em meio urbano.
Quando quis vir pro mato, era pra ver a cara do dia, era pra
ver a cara da noite. Me frustrava sair da caixa de concreto e ver o Sol já em
despedida do dia. Me frustrava ver poucas estrelas pingadas no céu. Aqui, acordo
nos primeiros raios que entram pela janela. Vejo o dia despertando em cores
rosas. Às vezes dou um mergulho no rio antes do almoço, por vezes tiro um
cochilo depois e vez ou outra arranho um violão enquanto espero o Sol suavizar
para voltar ao trabalho. Deduzo as horas pelo caminho do Sol e paro quase todo
dia pra ver as estrelas abundantes e a Lua, com trilha sonora especial dos
bichos e, algumas vezes, efeitos especiais de inúmeros vaga-lumes bem
orquestrados, que pirofagiam em sincronia.
Quando quis vir pro mato, era porque me apertava o coração
deixar uma cachorrinha de uma colega, que cuidei temporariamente na minha casa,
tantas horas sozinha enquanto eu estava no trabalho. Imagina se fosse um filho,
e eu tendo que terceirizar o afeto para trabalhar e passar mais de 10 horas
diárias longe de uma criaturinha com menos de 6 meses de vida. Não me imaginava
criando uma criança na cidade, levando a vida que vivia. Então, porque eu mesma
vivia nessa vida tão apartada de mim mesma durante tanto tempo do dia,
rotineiramente? Aqui, vejo os pais mais próximos dos filhos, mais bem resolvidos
em suas relações, crianças desenvoltas, felizes e saudáveis.
Quando quis vir pro mato, era pra conhecer mais de Brasil,
viajar por Minas Gerais, conhecer a história de outras pessoas, compartilhar a
convivência, aprender novos saberes, praticar. Troco trabalho por estadia,
alimentação e aprendizado. Gasto bem
pouco, aprendo muito. É interessante notar como a personalidade das pessoas se
estende para a paisagem, cada lugar reflete quem o habita. E em cada um, com
cada um, uma troca interessante. É bom conviver com pessoas que já traçaram uma
história no mato, são vivências que inspiram.
Quando quis vir pro mato, era porque tinha sede pelo novo. Com
frequência faço algo pela primeira vez, e me brota uma sensação boa que não sei
muito bem verbalizar. Primeiros olhares sobre as paisagens. A primeira árvore
plantada. A primeira vez que vi flor de liz, que colhi pimenta rosa na aroeira,
que vi transformarem cana em açúcar, goiaba em goiabada (no tacho de cobre, no
fogão a lenha). A primeira vez que comi grumixama, taioba, jambo, taboa,
caruru, figo fresco, morango silvestre, araçá, jussara, puba, yacon, coisas que
nem sei o nome. A primeira vez que fiz um mosaico, que ajudei a montar
estrutura de casa, que pisei barro. Entre várias outras primeiras vezes. Aqui,
acompanho processos, sou parte deles. Me sinto mais perto das origens, me sinto
mais integrada.
Aqui, ouvi dizer, pela primeira vez, que felicidade tem a
ver com coerência. Estando no mato, sou coerente comigo mesma, como outrora não
sentia.
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