quarta-feira, março 08, 2017

Quando quis vir pro mato


“... Ela dizia ‘Quando uma pessoa vive de verdade, todos os outros também vivem.´ E todos os animais, nós incluídos, por meros momentos, voltávamos a ser selvagens.

Ela queria dizer que, quando uma criatura resolve se dedicar a viver do modo mais pleno possível, muitas outras que estiverem por perto se ´deixarão contagiar´. Apesar das barreiras, do confinamento, até mesmo de lesões, se alguém se determinar a superar tudo para viver plenamente, a partir daí outros também o farão, e esses outros incluem filhos, companheiros, amigos, colegas de trabalho, desconhecidos, animais e flores. ‘Quando uma pessoa vive de verdade, todos os outros também vivem.´ Esse é o principal imperativo da mulher sábia. Viver para que outros se inspirem. Viver do nosso próprio jeito vibrante para que outros aprendam conosco.”

Clarissa Pinkola em A Ciranda das Mulheres Sábias

Quando quis vir pro mato, era pra conhecer a origem e o processo das coisas.  Me intrigava o fato de nunca ter visto um pé de arroz, e feijão só no algodão. Arroz e feijão. Tão presentes na vida, todo dia, convivência das antigas  e, ao mesmo tempo, velhos desconhecidos. Como é um pé de arroz? Como é a planta do feijão? Quase passando as 30 primaveras, sem saber algo tão essencial: saber a origem do alimento, saber cultivar o alimento. Desde que comecei a pular de mato em mato, não só conheci pessoalmente essas plantas, mas todo um universo rico de cultivo, preparo, processos, pessoas, sabores e saberes.

Quando quis vir pro mato, era pra vivenciar a lida rural. Sair do campo das ideias, da imagem mítica de se estar na rede por entre flores, borboletas e arco-íris e partir para a prática, pegar em enxada, amassar barro pra construir parede, capinar, processar os alimentos, plantar. Eu, bicho urbano, antes de me jogar no mato, julguei importante experienciar o ritmo de trabalho primeiro, que exige disposição e energia física, para então sentir se eu dou conta da vida no mato, se eu me encaixo na vida no mato. Ando descobrindo que eu gosto mesmo da vida do mato. E de toda a labuta envolvida. Agora, é difícil me ver tocando a vida em meio urbano.

Quando quis vir pro mato, era pra ver a cara do dia, era pra ver a cara da noite. Me frustrava sair da caixa de concreto e ver o Sol já em despedida do dia. Me frustrava ver poucas estrelas pingadas no céu. Aqui, acordo nos primeiros raios que entram pela janela. Vejo o dia despertando em cores rosas. Às vezes dou um mergulho no rio antes do almoço, por vezes tiro um cochilo depois e vez ou outra arranho um violão enquanto espero o Sol suavizar para voltar ao trabalho. Deduzo as horas pelo caminho do Sol e paro quase todo dia pra ver as estrelas abundantes e a Lua, com trilha sonora especial dos bichos e, algumas vezes, efeitos especiais de inúmeros vaga-lumes bem orquestrados, que pirofagiam em sincronia.

Quando quis vir pro mato, era porque me apertava o coração deixar uma cachorrinha de uma colega, que cuidei temporariamente na minha casa, tantas horas sozinha enquanto eu estava no trabalho. Imagina se fosse um filho, e eu tendo que terceirizar o afeto para trabalhar e passar mais de 10 horas diárias longe de uma criaturinha com menos de 6 meses de vida. Não me imaginava criando uma criança na cidade, levando a vida que vivia. Então, porque eu mesma vivia nessa vida tão apartada de mim mesma durante tanto tempo do dia, rotineiramente? Aqui, vejo os pais mais próximos dos filhos, mais bem resolvidos em suas relações, crianças desenvoltas, felizes e saudáveis.  

Quando quis vir pro mato, era pra conhecer mais de Brasil, viajar por Minas Gerais, conhecer a história de outras pessoas, compartilhar a convivência, aprender novos saberes, praticar. Troco trabalho por estadia, alimentação  e aprendizado. Gasto bem pouco, aprendo muito. É interessante notar como a personalidade das pessoas se estende para a paisagem, cada lugar reflete quem o habita. E em cada um, com cada um, uma troca interessante. É bom conviver com pessoas que já traçaram uma história no mato, são vivências que inspiram.

Quando quis vir pro mato, era porque tinha sede pelo novo. Com frequência faço algo pela primeira vez, e me brota uma sensação boa que não sei muito bem verbalizar. Primeiros olhares sobre as paisagens. A primeira árvore plantada. A primeira vez que vi flor de liz, que colhi pimenta rosa na aroeira, que vi transformarem cana em açúcar, goiaba em goiabada (no tacho de cobre, no fogão a lenha). A primeira vez que comi grumixama, taioba, jambo, taboa, caruru, figo fresco, morango silvestre, araçá, jussara, puba, yacon, coisas que nem sei o nome. A primeira vez que fiz um mosaico, que ajudei a montar estrutura de casa, que pisei barro.  Entre várias outras primeiras vezes. Aqui, acompanho processos, sou parte deles. Me sinto mais perto das origens, me sinto mais integrada. 

Aqui, ouvi dizer, pela primeira vez, que felicidade tem a ver com coerência. Estando no mato, sou coerente comigo mesma, como outrora não sentia.



 

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