sábado, agosto 18, 2018

O que você repara no mundo?


O que você repara quando anda por aí? Uma vez, conversando com amigas, percebemos que cada uma reparava mais em alguma coisa. Um reparava nas árvores caídas e tocos largados que poderiam render umas boas peças de madeira. Outra, reparava no que poderia tirar estaca para plantar no canteiro e produzir matéria orgânica para o solo. Eu, reparava no que dava para comer. Cada olhar tinha o radar praquilo que gerava prazer interno. Um adorava construir com madeira, outra fazer agrofloresta, eu encontrar e coletar alimentos enquanto caminhava. Quizás um prazer ancestral de quanto éramos nômades. Coletar, comer, repartir, criar formas diferentes de comer, conservar, fermentar… é tanta coisa que se pode fazer, é tão abundante.

Analisando em retrospecto, esse olhar não é de agora. Quando pequena, assim que chegava no sítio do meu vô, nem passava pela casa, descia direto pro pé de acerola. Ia catando com o maior gosto do mundo, até eu perceber que estava pisando em formigueiros de lavas-pés, quando elas já tinham feito jus ao nome. Segundo dia, os pés com aquelas micro-bolinhas-delícia-de-estourar das picadas, ia olhando para o chão com cautela. Mas logo vinham as próximas férias, e a mesma cena se repetia.

Quando mudei para Campinas, trabalhava no Centro, pegava um ônibus até o terminal e tinha a opção de pegar outro até em casa, ou caminhar um pouco mais de 1km por uma praça longa, com árvores antigas e pés de amora. Usava muito salto na época (trabalhava em banco), mas não pensava duas vezes e já ia afundando salto e tudo pela grama e parava pra catar amora. Nas folgas às vezes ainda me aconchegava em uma das grandes árvores e ficava lendo livro.

A primeira vez que fui para Sorocaba, foi para fazer um processo seletivo. Fiquei pasma de passar pela marginal da cidade, cheia de carros, e ver que no rio, haviam pessoas pescando! Tinha muita árvore, muitos quintais com plantas. Foi o suficiente para eu simpatizar. Não dei atenção a estrutura urbana, se tinha shopping, ou sei lá o quê, quando soube que tinha passado no processo seletivo, fui na imobiliária e disse assim: moço, quero morar perto do trabalho para ir e voltar a pé, então olha para mim algo até um raio de 3km do Sesc.

Sempre gostei de caminhar, justamente para poder reparar nas coisas como nossa percepção foi feita para reparar. Não na velocidade de um carro, nem de tartaruga, nem de cachorro, mas na velocidade humana. Esses dias li um artigo, chamado “Mas de que te serve saber botânica?” que faz uma crítica ao confinamento dos conhecimentos científicos. Entre outras coisas, fala sobre cegueira botânica.

Wandersee e Schussler (2002) criaram o termo e o definiram como a) a incapacidade de reconhecer a importância das plantas na biosfera e no nosso cotidiano; b) a dificuldade em perceber os aspectos estéticos e biológicos exclusivos das plantas; c) achar que as plantas são seres inferiores aos animais, portanto, imerecedores de atenção equivalente.”

Dizia que, se tem lá uma foto de uma savana africana e girafas, e você perguntar para alguém o que tem na foto, provavelmente responderá: girafas. E todas as outras espécies, plantas rasteiras, arbustos, árvores e afins, passam batido, sendo que só existem girafas nesse ambiente porque existem plantas, senão elas não teriam comida. E, não só, tais plantas também são alimentos de elefantes. A acácia africana tem espinhos que, por si só, não são um problema para esses animais. Contudo, nos espinhos habitam formigas agressivas que podem causar forte irritação na mucosa da tromba do elefante, e, tchadãm! Agora sabemos porque nos desenhos animados o elefante tão gigante tem medo de tão pequena formiguinha.

Na neurofisiologia, a justificativa é que o cérebro processa 0,00016% dos dados produzidos nos olhos, “com prioridade para aspectos como movimento, padrões salientes de cores, elementos conhecidos e seres ameaçadores. As plantas são estáticas, não se alimentam de humanos e confundem-se com o cenário de fundo, tendendo a ser ignoradass no processamento cerebral, a não ser que estejam em floração ou frutificação”

Claro que, se vivéssemos na floresta sobrevivendo de extrativismo, a prioridade seria outra. O contexto e fatores culturais importam. Na cidade, associamos a mandioca àquela porçãozinha com cerveja, e não na planta inteira saindo da terra. A vida na cidade nos afastam dos processos e origem das coisas. Você aí já viu um pé de arroz de verdade? Quantas vezes na vida você já comeu arroz? No entanto, capaz de você topar com um pé de arroz e não saber identificar. E feijão sem ser no algodão?

Essa experiência do feijão foi introduzida no ensino por um americano na década de 50, justamente no período de mecanização e urbanização, e se espalhou pelo ocidente com o objetivo de ensinar que: a planta vem da semente. Parece pouco, mas talvez a humanidade tenha passado longos períodos sendo nômade e tenha se espalhado por todos os continentes por não ter essa percepção. Bom, depois que brotou da semente, como cuidar, nutrir, se relacionar com a terra, fica totalmente a revalia. Saber cultivar o próprio alimento, tão essencial, tão negligenciado.

No artigo, diz que meaculpa da cegueira botânica é porque o ensino é chato. Nas escolas, na Universidade, é insonso, muito teórico, desinteressante. Enquanto vida de bicho é mais divertida. Como sabemos, falta estrutura. Para além, falta ir a campo, investigar, observar, interagir. Falta experientações: aprender sobre clorofila e pigmentos fica muito mais legal quando se pega a planta, tira uma cor dela e pinta, do que um quadro explicativo na lousa. Falta relacionar com outras disciplinas: qual a planta que aparece na bandeira do Peru? Quantas histórias indígenas conhecemos sobre a origem do guaraná, da mandioca, da vitória régia? Quais plantas mudaram o rumo da história? Por quê o pau-brasil foi tão saqueado?

Outro fator que considero, é que os meios de transporte nos aceleram, sendo meios, se botam entre nós e o todo, nos afastam. Caminhando há uma percepção muito diferente. Você fica mais livre para olhar, parar, tocar, sentir cheiros, colher, sujar a mão de amora… plantas são essenciais, são o que transformam a energia do Sol em matéria e produzem comida (a.k.a. fotossíntese). Imagina quantas vidas viveriam sem plantas no mundo? Vai fundo e imagina mesmo todo o ciclo. Depois me conta.

E, se acha que estar no mato é muito bucólico, cheio de marasmo, experimenta deitar um pouco na terra ao final da tarde e ficar uns minutos ali. É tanta vida acontecendo, trânsito de seres, os de dia se recolhendo, os da noite dando as caras, nuvens mudando de cor rapidamente, brisa, vento, sons, todo um turbilhão! No entanto, não aprendemos a reparar. Não aprendemos nem a reparar em nós mesmas, a nossos movimentos internos, os ciclos em relação com o meio, as estações, a lua, os alimentos que sentimos vontade em determinadas épocas, as vontades que alternam entre estar no fervo ou em solidão, nosso mar e ondas internas. Pra reparar é preciso silenciar um tanto, prestar atenção a nossa cegueira em relação a nós mesmas.

Esse inverno reparei que estou para dentro, mergulhei em alguns diários antigos, compartilho aqui:




Um comentário:

KlaussMax disse...

texto lindo! Parabéns!