quinta-feira, janeiro 15, 2015

Perceber o que se revela no que se esconde

"Toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar
E o mundo por ser redondo, tem por destino embolar
Toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar
Desde que o mundo é mundo, nunca pensou de parar
Toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar
E tem hora que até me canso de ver o mundo rodar"

(Siba - Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar)



Das fotos de infância, essa é a que eu mais gosto. A não pose em família. Estão aí, estando. Talvez nem tivessem percebido que alguém tirava a foto. Esse alguém, provavelmente foi meu avô, registrando a benfeitoria do sítio: A roda d'água.

Não lembro dessa foto ter rodado em nenhuma tarde naqueles tempos, quando era hábito botar os álbuns na mesa para as visitas, entre a passada do café e um pedaço de bolo. Álbuns, estrategicamente construídos, com as melhores na frente e as ruins no final. Definir a ordem, os critérios de qual era boa, qual ruim, qual merecia ser a capa, qual merecia ficar de escanteio, era assunto a ser discutido. As escondidas no meio, aquela que alguém saiu de cara torta, ou que queimou, ou mais picante. Adorava aquelas de final de filme, que se misturavam, sobrepostas, duas em uma. De qualquer forma, não lembro dessa foto em álbum. Não sei se não lembro por ser muito pequena, ou se a foto ficou guardada em outro canto.

Um primo, depois que meu avô faleceu, encontrou nas coisas dele, escaneou e enviou para a família. Devidamente situado no espaço, com caneta BIC por cima da foto: SITIO ALIANÇA: II – Panorama. Mas não diz quando. O que me faz achar que era foto não de álbum de família, mas das coisas do sítio. Filho que vingou de Severino com Maria, entre as 13 de 21, ou de 22, pessoas, registrar a parte que conquistou nesse latifúndio era importante. Mais do que os rostos. A roda faz pose mais que todo mundo, mas não esta tomando o centro. Esta contextualizada, bem colocada, entre as pessoas, entre a água, o pasto, as árvores, o céu, que compõem o que cabem nesse pedaço de terra, se relacionam, nesse pedaço de enquadre. Constata vida, em relação. Não é paisagem, nem retrato. E é os dois meio ao avesso. O tamanho, a curvatura da coluna, o bronzeado, alguma característica que sobressai, o jeito de se colocar, torna as pessoas reconhecíveis. Não todas, não para todas. É preciso, além de um olhar mais demorado, uma certa convivência para reconhecer a personalidade dos corpos. As que estão na foto conseguem se auto reconhecer, imagino, e também reconhecer algumas mais próximas. Na mesma medida, desconhecem outras, que são reconhecíveis por ainda outros olhares mais chegados. Um jogo de adivinha. Para os mais novos: hum, quem é esse mesmo, maior que eu nessa época? Um jogo de memória. Para os mais velhos: hum, quem estava nesse dia no sítio mesmo?


Não lembro, e não sei, se essa roda tinha alguma função outra, do que garantir a diversão das férias. Pelo que sei do meu avô, com certeza devia ter uma função operacional principal, e se refrescar era só um adjacente, muito bem vindo e explorado. O que importava naquele momento, era o frescor de estar ali, no meio do pasto embaixo do Sol quente, num buraco raso com água corrente. As mulheres, jacarezando, sentadas para cobrirem seus corpos o quanto mais possível com água, sem muitos movimentos, ao redor, de olho nos filhotes. Os meninos, em volta da roda, de olho nela, agitados, em pé, em movimento. Pequenos, curtindo o remelexo das águas. Uma família, mais branquela, talvez mais urbana, se preparando para entrar na água, aos poucos. Outros ali chegando de roupa, já na intenção de tirar. Um outro tio ali mais próximo, na tranquilidade, contemplativo. To aí também, de orelhas grandes, jacarezando com as mulheres, mas de espreita no que os meninos estão fazendo, discretamente a caminho, inclinada pra frente, com um rastro de água atrás. Ser, estando. Ali, naquele espaço fora do tempo, enquanto roda a água e roda a vida.

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